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Mudanças de padrão rítmico no samba carioca,1917-1937

Carlos Sandroni

O objetivo desta comunicação é apresentar algumas mudanças ocorridas no samba urbano carioca na virada dos anos '30 do presente século, e discutir brevemente possíveis relações destas mudanças com outras mudanças ocorridas na sociedade brasileira, notadamente as que dizem respeito às relações raciais e à imagem dominante do Brasil enquanto país multi-racial.

A palavra "samba" no Brasil serve para designar muitas coisas diferentes mas principalmente duas: um tipo de festividade musical-coreográfica classificada pelos brasileiros como folclórica (há boas descrições deste tipo de samba em Edison Carneiro, 1982 e Ralph Waddey, 1981); e um gênero de música moderna de consumo que no Brasil é dito popular. O nosso tema é o samba popular, nascido no Rio de Janeiro há cerca de 80 anos ( e por isso dito às vezes "samba carioca"), e é nesse sentido que a palavra será empregada; mas nossa abordagem exigirá referência às práticas ditas folclóricas, que mantém com êle relação de grande riqueza. As palavras folclórico e popular são usadas aqui como categorias indígenas: de fato, trata-se de termos empregados pelas próprias pessoas envolvidas com essas práticas musicais, termos cujo sentido, esperamos, será esclarecido no decorrer deste texto.

O nascimento do samba carioca data do carnaval de 1917 e do sucesso estrondoso da canção Pelo Telefone, apresentada como "samba carnavalesco" por seu autor ostensivo, Ernesto dos Santos ("Donga"). Dizemos "ostensivo" porque a autoria deste primeiro samba de sucesso é um dos assuntos mais polêmicos da história da música brasileira. Flávio Silva (1975) mostrou que a peça é uma colagem de elementos melódicos e textuais que em grande parte já existiam na tradição oral. O que se chamava "samba" até então no Rio de Janeiro era uma prática festiva, musical e coreográfica restrita a certos grupos, principalmente de negros e mestiços, e como tal submetida a uma série de interdições. A composição de Donga, ao contrário, empolgou a cidade inteira e tornou-se "a canção do carnaval de 1917". Darius Milhaud, que chegou ao Rio precisamente nessa época, como secretário particular do embaixador Paul Claudel, dá um eloquente testemunho disso em sua autobiografia (Milhaud 1973). Desde então, "samba" se torna um sinônimo de sucesso popular: um gênero de canção comercial destinado ao disco, ao rádio, ao consumo geral.

Entre 1917 e 1930, uma quantidade enorme de sambas foi gravada. A literatura especializada, no entanto, é unânime em considerar que é somente a partir de 1930 que o samba tal como o conhecemos hoje faz seu aparecimento (vide por exemplo Máximo e Didier,1990:117-120, e Marcondes,1977:709). As pessoas envolvidas com o samba atualmente no Rio de Janeiro não terão dificuldade em identificar uma gravação de ca. 1935 como um exemplo do gênero; mas as gravações anteriores a 1930 que eram na época batizadas de "sambas", são hoje em dia geralmente identificadas à primeira escuta como "maxixes", ou no máximo "sambas amaxixados". Essa transformação é geralmente atribuída a um grupo de sambistas que morava nos arredores do Largo do Estácio de Sá, como Ismael Silva, Nilton Bastos e outros, o mesmo grupo que criou a primeira escola de samba em 1928 e que teria influenciado os sambistas da Mangueira, da Portela etc no rumo do novo estilo. Mas a referida transformação não foi ainda estudada nem em termos musicológicos, nem sociológicos. As páginas que se seguem pretendem contribuir para preencher esta lacuna.

Tomemos, para uma primeira comparação, dois sambas separados por cinco anos: Jura , de 1928, e Onde está a honestidade , de 1933. O primeiro é de Sinhô (José Barbosa da Silva, 1888-1930), que na década de '20 era conhecido como o "Rei do Samba", e que ainda hoje em dia é considerado o compositor mais importante daquele período. O segundo, de Noel Rosa (1910-1937), provavelmente o compositor mais marcante da década de '30. Uma comparação exaustiva entre as duas gravações está fora do escopo desta comunicação, mas a observação das diferenças principais pode ser instrutiva.

Em primeiro lugar, note-se a presença em Onde está a honestidade de um grupo de ritmistas. Este era o termo empregado na década de '30, e em certas áreas até hoje, para designar o que era então uma novidade: a participação, nas gravações, de músicos oriundos do meio cultural afro-brasileiro, tocando instrumentos como o surdo, o tamborim, o pandeiro, a cuíca etc. Essa participação aconteceu pela primeira vez no final de 1929, quando foi gravado pelo "Bando de Tangarás" (do qual Noel Rosa era integrante) o samba Na Pavuna, grande sucesso do Carnaval de 1930; os ritmistas em questão eram Canuto, Puruca e Andaraí, negros e habitantes do morro do Salgueiro, um dos redutos da cultura afro-brasileira no Rio de Janeiro. A presença do surdo no refrão de Na Pavuna é tão marcante que o samba ficou conhecido popularmente como Na Pavuna, bum-bum-bum. Na verdade o "bum-bum-bum" (representando onomatopaicamente as três colcheias tocadas pelo surdo a cada repetição do título) tornou-se mais conhecido que o próprio título, como mostra o testemunho do próprio autor, Almirante (1960:63) - o samba era chamado popularmente de "Caradura, bum-bum-bum", "Lá vai uma, bum-bum-bum" e até "Amapola, bum-bum-bum" (Amapola era uma gravação do tenor Tito Schipa que fazia muito sucesso na época) .

A data de 1928 coincide com a introdução no Brasil do sistema de gravação dito "elétrico", que substituiu o sistema dito "mecanico" e que melhorou as possibilidades técnicas das gravações. Mas coincide também, como vimos, com a fundação da primeira escola de samba, a Deixa Falar , por Ismael Silva e seus amigos moradores do Largo do Estácio de Sá. É evidente que a possibilidade técnica de gravar os instrumentos da batucada por si só não explica a sua irrupção maciça subsequente nos discos de samba. De fato, essa irrupção não foi imediata; é só a partir de 1932 que ela se generaliza. Ora, é também em 1932 que ocorre o primeiro desfile de escolas de samba na Praça Onze (o desfile foi promovido pelo jornal O Mundo Esportivo e a manchete que o anunciou dizia: "A alma sonora dos morros descerá para a cidade", como nos ensina Castro, 1992:118. )
A Praça Onze (de Junho) é por assim dizer um dos principais personagens do carnaval carioca da primeira metade do século, cantada em prosa e verso, em letras de samba, crônicas e memórias. Sua importância está ligada, a nosso ver, precisamente a seu papel de mediadora entre o "morro" e a "cidade", como deixa entrever a manchete mencionada, e como mostrou Artur Ramos em uma página antológica (Ramos, 1935:274). A introdução dos ritmistas nas gravações se inscreve neste movimento de mediação. Através dêles, um signo barulhento e ostensivo das práticas culturais afro-brasileiras faz sua aparição nos rádios e nos toca-discos da classe média carioca.

Passemos a outro elemento de diferença entre as duas gravações: o restante do acompanhamento. Em Jura, a orquestra dialoga com o cantor pontuando a melodia através de pequenas intervenções. O estilo destas é típico e pode ser encontrado em um sem número de gravações da mesma época, constituindo-se em verdadeiras frases-clichê. O que há de mais característico nelas é o ritmo - quase sempre sequências de síncopes internas aos tempos: semicolcheia-colcheia-semicolcheia, e mais raramente sequências de síncopes internas a um compasso 2/4: semicolcheia-colcheia-colcheia-colcheia-semicolcheia.

Detenhamo-nos um momento na questão do papel da orquestra nas gravações de samba entre 1928 e 1933. A estrutura das gravações é quase sempre a seguinte: introdução orquestral-canto-repetição da introdução-canto-versão orquestral da melodia-repetição da introdução. Assim, vemos que a "introdução" funciona não apenas como introdução propriamente dita, mas também como intermezzo e coda (não obstante, introdução é o seu nome nativo e assim continuaremos a chamá-la). Nas gravações até cerca de1931 as introduções orquestrais utilizam de maneira quase obsessiva ritmos como os descritos acima. Quanto à parte que chamamos de "versão orquestral da melodia" a questão é mais complicada, e ela será rediscutida adiante. Por ora diremos apenas que se trata de uma reexposição, por variados instrumentos da orquestra, da melodia que fora exposta pelo cantor que centraliza a gravação. A correspondência não é perfeita entre a versão que dela apresenta a orquestra (ou, para ser exato, os diversos solistas da orquestra) e as versões apresentada pelo cantor nas duas ou três repetições que comporta a gravação; as diferenças entre essas versões serão matéria para discussão posterior.

Nos sambas do tipo de Onde está a honestidade, a pontuação orquestral diminui considerávelmente de importância, e as frases-clichê desaparecem. A rítmica descrita acima também muda: na introdução, as síncopes não mais privilegiam o espaço interno aos tempos e agora passeiam alegremente entre tempos e entre compassos.

O terceiro ponto onde os dois sambas diferem é a nosso ver o mais interessante. Trata-se do que chamamos de "padrão rítmico" no título da nossa comunicação.

A primeira vez que notamos uma mudança de "padrão rítmico" no samba, foi ao observar os modos de acompanhamento praticado pelos violonistas. Uma pesquisa efetuada em 1994 com dez violonistas profissionais cariocas, cujas idades variam entre 35 e 76 anos, mostrou que mesmo se cada um possui seu "estilo individual" de acompanhar os sambas, existe uma identidade subjacente a toda essa variedade. Essa identidade consiste em uma figura rítmica que pode ser traduzida em 16 semicolcheias organizadas métricamente em 4 tempos, e rítmicamente segundo o princípio da "imparidade rítmica" descrito por Arom (1985). Creio que vale a pena lembrar brevemente o que vem a ser isso.

Arom mostrou a existência nas músicas da República Centro-Africana (existência que seria, ao que parece, compartilhada pelo resto da África subsahariana) de uma tendênca a organizar figuras rítmicas de uma maneira "ímpar" no quadro de uma periodicidade "par". Isto é, em períodos que podem ser transcritos em 8, 12 ou 16 semicolcheias, a rítmica não se organizará, como na música ocidental, em 4+4, ou 2+2+4, ou 6+6, ou mesmo 4+4+4 etc, onde a metade exata é sempre um ponto privilegiado da articulação rítmica. Ao contrário, o princípio da imparidade rítmica consiste em evitar sistematicamente a metade exata, agrupando as semicolcheias em duas "quase-metades" ímpares: assim, 8 é dividido em 5+3, 12 em 5+7 e 16 em 7+9.

Pois bem, as figuras rítmicas tocada pelos dez violonistas de samba que entrevistamos (e também pelas dezenas de outros que já vimos ou ouvimos tocar) são todas casos perfeitos de imparidade rítmica sobre 16 semicolcheias. A nosso ver, é esta organização rítmica que garante a identidade última sob a profusão de variações. Tanto a identidade como a variação foram aliás explicitamente reconhecidas pelos meus entrevistados: trata-se sempre da batida de samba, mas com o môlho de cada um, que é um valor propriamente estético, pois um violonista que se limita a reproduzir o estilo de um outro não é valorizado por seus pares.

Ora, escutando as gravações da época de Pelo telefone a que tivemos acesso, percebemos que a batida do violão se organizava num período de 8 e não 16 semicolcheias, e que à primeira vista sua subdivisão não mostrava o princípio da imparidade rítmica. (Dizemos de propósito "à primeira vista", porque se trata em primeiro lugar da aparência da batida em questão, quando escrita. Voltaremos ao assunto).

No caso do violão, portanto, a "mudança de padrão rítmico" está muito claramente estabelecida. O problema é que para levar adiante a compreensão do como e porquê dessa mudança, seria necessário estudar não apenas um e outro padrão já completos e perfeitos, mas sobretudo o momento da mudança nêle mesmo. No entanto, infelizmente, é muito difícil de perceber através das gravações de 1928/1933 a mudança no próprio violão, pois ora é a orquestra, ora a batucada quem assume o primeiro plano do acompanhamento . Gravações de samba na base de "violão e voz", como se fez em Pelo telefone e no início da década de '20, e como se voltaria a fazer a partir da bossa-nova e da revalorização de sambistas como Cartola e Nelson Cavaquinho na década de '60, foi algo extremamente raro durante quase trinta anos (ou seja, entre inícios da década de '30 e finais da década de '50). Para entender melhor o processo de mudança do padrão rítmico, era necessário saber se essa mesmo processo se manifestava também em outros aspectos do samba.

O primeiro em que pensamos foi a própria batucada, que todos reconhecem ser um dos elementos mais importantes do samba, seja na versão gravada (a partir da década de '30, como vimos), seja na versão por assim dizer espontânea, na rua, no botequim ou na quadra da escola de samba. As entrevistas com violonistas reforçaram esta intuição, pois nelas foi unânime o reconhecimento da íntima relação entre o que faz o violonista do ponto de vista rítmico e os diversos instrumentos da batucada, em especial o tamborim.

De fato, a escuta de alguns discos de samba mostra a presença marcante do padrão rítmico que os violonistas me forneceram, mas executado por tamborim, cuíca, pandeiro, ou mesmo batido numa garrafa. A ocorrência mais antiga que encontrei deste padrão numa batucada gravada foi o samba Vou te abandonar , de Heitor dos Prazeres, interpretado por Paulo da Portela em 1930. Lá, êle aparece com toda a clareza tocado por um instrumento de difícil identificação, mas do tipo do surdo (tambor grave). Nas outras gravações do início da década de '30 que examinei, este padrão aparece com uma frequência cada vez maior à medida que a década avança; de modo geral, sua enunciação não pode ser atribuída claramente a um ou outro instrumento, mas ao que proponho chamar de "seção rítmica", isto é, à batucada mais os instrumentos de função rítmico-harmônica, como o piano, o cavaquinho e os violões.

Quanto ao padrão "antigo", a questão é mais complicada. De fato, a batida feita pelo violão no acompanhamento dos sambas gravados antes de 1930 não possui um equivalente exato no restante da "seção rítmica". Mas uma série de razões que não poderei desenvolver aqui por falta de espaço me levam a postular uma equivalência musical, no contexto do samba carioca, entre a batida em questão e o padrão rítmico 332 (isto é, colcheia pontuada-colcheia pontuada-semicolcheia), que é também um caso de imparidade rítmica, mas sobre 8 semicolcheias e não 16. A equivalencia entre a batida "antiga" do violão e o 332 é disfarçada, como vimos, pela maneira como aquela costuma ser escrita: semicolcheia-colcheia-semicolcheia/colcheia-colcheia (isto é, 121-22, com a cesura na metade exata), em vez de semicolcheia-colcheia/semicolcheia-colcheia/colcheia (isto é, 12-12-2, com a cesura na quase-metade).

No caso de Jura, é bem um 332 que podemos escutar com especial nitidez no início da segunda parte, tocado pelo piano. Em inúmeras outras gravações de sambas da década de '20 é o cavaquinho quem toca nitidamente este padrão. Cabe lembrar também que Na Pavuna, como vimos a primeira gravação a incorporar elementos de batucada, apresenta em seus dois tamborins um 332 acrescido de uma versão subdividida do mesmo padrão.

O que muda é portanto a batida do samba, no sentido amplo, já identificado por Araújo (1992:141): o termo refere-se tanto ao violão quanto à batucada. A batida não é uma figura rítmica fixa, mas um padrão que pode se realizar como tal, num ostinato estrito, ou então funcionar como o que Arom chama de ostinato à variations.

Mas a escuta das gravações do período 1928-1933 revelou um outro e inesperado elemento que integra o que chamamos "mudança de padrão rítmico" do samba, que mostrou ser o mais interessante para o estudo dessa mudança no momento mesmo em que ela se produzia.
É sabido que os cantores populares influenciados pela cultura afro-brasileira tem forte tendência a cantar articulando as sílabas (ou boa parte delas) fora dos pontos de apoio previstos pela teoria ocidental do compasso (vide por exemplo Waddey 1982 para o caso do samba de viola baiano e Itiberê 1946 para o das escolas de samba cariocas. Waterman 1952 discute a mesmo questão do ponto de vista geral da música afroamericana). Mas não há, na literatura sobre o samba que conhecemos, nenhuma constatação de que exista um "sistema" na maneira como essa "contrametricidade" se organiza: Brasílio Itiberê no artigo que acabamos de citar afirma que "o que se encontra no canto popular é a múltipla variedade de uma rítmica livre, espontânea, saiu-como-saiu". Também Araújo (1992:148) afirma em seu estudo do samba carioca que song rhythms are not typically cyclic. Ora, ao estudar o período mencionado, verificamos ao contrário, e não sem surpresa, a existência de um grande número de sambas cujas melodias tendiam a se organizar ritmicamente de maneira determinada, e não aleatória. Não apenas elas tendiam a contrariar os apoios "naturais" dos compassos 2/4 em que são geralmente escritas, mas essa contrametricidade acontecia sempre nos mesmos pontos de um período dado e não nos outros, isto é, acontecia de maneira sistemática, cíclica.

Essa verificação se deu também porque em muitas gravações não se ouve bem o violão nem a batucada, tampouco o cavaquinho ou o piano, ou seja, nenhum dos elementos da "seção rítmica" que permite caracterizar a batida, o "modo" do acompanhamento. E no entanto a sensação de estar escutando um samba no novo estilo é perfeitamente definida. Intrigados por este fato, começamos a transcrever as melodias dos sambas e a constatar que êles eram construídos ritmicamente, por assim dizer, na fôrma da nova batida. Não é que o ritmo da melodia seja uma repetição, mesmo variada, do ritmo da batida : não se trata, desta vez, nem de ostinato estrito nem de ostinato à variations . O que se passa é que as sílabas da melodia são articuladas preferencialmente nos pontos de apoio da batida, e não necessariamente nos pontos de apoio do compasso (embora às vezes eles coincidam). Assim, a "taxa de contrametricidade" da melodia, sua relativa indiferença à hierarquia de pontos fortes prevista pelo conceito ocidental de compasso, nos faz ouvir, através da "batucada" da articulação silábica, a mesma batida nova da seção rítmica que faz o pano de fundo da gravação.

Essa afirmação não se pretende válida para o conjunto do samba carioca, nem muito menos para os sambas-de-umbigada definidos por Carneiro (1982). Nosso estudo se restringe às gravações comerciais de sambas entre 1928 e 1933. Dentro desse corpus, constatamos que as melodias cujo modo de articulação rítmica tende a identificar-se à batida nova são sobretudo as do grupo de compositores do Estácio e seus próximos (em particular Noel Rosa). Mas nos parece que estudos posteriores poderão mostrar a existência, ainda que sem exclusividade, do mesmo "modêlo escansional" em outras áreas do samba.

Dissemos que o ritmo das melodias era uma área privilegiada para o estudo da mudança de padrão rítmico. A razão disso é que sendo a melodia, numa dada gravação, exposta várias vezes (ora pelo cantor principal, ora pelo coro, ora pelos diferentes instrumentos da orquestra); e sendo diferentes as velocidades com que se processa a referida mudança em cada um dêsses enunciadores - o resultado é que, para cada gravação, possuímos diferentes versões rítmicas da mesma melodia, mostrando no detalhe o duro trabalho de aprendizagem - em suas várias "etapas" - necessário para forjar o que nos anos seguintes se tornaria o ritmo "natural" do samba.

Mas o que é realmente interessante é que essas diferentes versões rítmicas não são socialmente neutras. Se tomarmos um dado grupo de sambas gravados por Francisco Alves no Rio de Janeiro em 1931, veremos que nas intervenções da orquestra, a parte das cordas é sempre muito mais cométrica que a dos metais. E de fato, a posição social destes dois tipos de instrumentos era radicalmente diferente, como aliás é até hoje: se, por exemplo, lermos no encarte de um disco recente de música brasileira o nome dos músicos da orquestra, teremos nas cordas Giancarlo Pareschi, Marie Christine Springel, Michel Bessler, Jacques Morelembaum; e nos metais, Serginho do Trombone, Formiga, Bidinho, Paulinho do Trompete. Nas cordas, chamados pelos seus nomes completos, filhos ou netos de europeus, com formação musical de conservatório ou equivalente; nos metais, nomes "populares": diminutivos (Serginho...), nome incorporando o instrumento (...do Trombone), apelidos trissilábicos com acento na sílaba do meio (Formiga etc), e nenhum nome-de-família mencionado. Os metais, desde o século passado, são no Brasil instrumentos "populares", cujos músicos são recrutados nas camadas desfavorecidas da população, músicos cuja formação não é feita nos conservatórios mas no exército ou nas "bandas de música"; músicos que, finalmente, sempre animaram os bailaricos populares, desde os "choros" da virada do século até os bailes de carnaval, como ainda hoje.

Mas não é que o novo padrão rítmico possua alguma essencia popular, ou que a pobreza ou o sangue negro tornem automáticamente mais fácil a assimilação dêle. O que acontece é que um padrão rítmico altamente contramétrico, que se organiza em 16 semicolcheias sob a lógica da "imparidade rítmica", é muito mais difícil de ser aprendido por um músico formado na tradição clássica européia do que por um músico formado na tradição popular afro-brasileira. Este último toca tal tipo de ritmo "intuitivamente", pois é de ritmos assim que se faz o seu pão quotidiano. Para o primeiro, ao contrário, a contrametricidade é a exceção (a "síncope"), que exige o complicado recurso gráfico da ligadura, e o recurso analítico da contagem.

A mudança de padrão rítmico do samba nos anos trinta reflete pois uma nova capacidade, por parte da cultura oficial brasileira, de aceitar padrões do tipo "imparidade rítmica". Desde o final da década de '30 a música escrita, a música gravada, os músicos de conservatório que participavam das gravações, os arranjadores, os diretores artísticos das gravadoras, o público consumidor de discos e de partituras, todo este conjunto que estamos chamando de "cultura oficial", passou não apenas a aceitar musicalmente o novo padrão, mas a considerá-lo como a essencia do samba e de alguma maneira como a expressão artística maior da "brasilidade".

O que acabamos de dizer supõe que o "padrão novo" não era realmente novo, pois já seria praticado no contexto informal da parte da música popular carioca que não deixa registro escrito nem gravado... mas eis aí algo que é difícil de provar de maneira positiva. Não obstante, vejamos os sinais que apontam nesta direção.

Em primeiro lugar, a clara origem africana do padrão discutido (vide por exemplo Mukuna s/d:126). Quanto a este ponto, mais importante do que a busca da ocorrência precisa do mesmo padrão na música de alguma sociedade africana em particular, nos parece ser o fato de que a lógica rítmica que organiza o padrão é africana, e não européia nem ameríndia: lógica cuja melhor descrição se encontra a nosso ver no livro já citado de Arom sobre as poliritmias da República Centro-Africana.

Em segundo lugar, constatamos a existência do mesmo padrão em certas áreas da música folclórica afro-brasileira: notadamente, em gravações de samba-de-viola feitas por Waddey na Bahia (comunicação pessoal), numa gravação de umbanda feita no Rio de Janeiro por Tiago de Oliveira Pinto (Pinto 1986) e numa das modalidades do candomblé de Angola praticado no Rio de Janeiro .
Em terceiro lugar, a gravação já mencionada de Vou te abandonar, de Heitor dos Prazeres, por Paulo da Portela em 1930 mostra já perfeitamente estabelecido o padrão "novo", que levaria ainda dois anos pelo menos para encontrar expressão igualmente fiel nas gravações das estrêlas do rádio e do disco como Francisco Alves. Tanto Heitor dos Prazeres como Paulo da Portela eram negros intimamente ligados às fontes da cultura afro-brasileira no Rio de Janeiro .

Tudo isso parece indicar que o padrão rítmico em questão já era moeda corrente na prática musical da comunidade afro-brasileira, inclusive no Rio de Janeiro, desde bem antes de 1930. Se se aceita esta hipótese, duas perguntas se impõe: primeiro, porquê o padrão "novo" demorou tanto a fazer sua aparição na música gravada e escrita, enquanto o padrão "antigo" já tinha aberto seu caminho desde o século anterior; segundo, porquê, uma vez que o padrão "novo" aparece, êle o faz de maneira muito mais pronunciada do que permitiria supor seu papel na música folclórica. Em outras palavras, porquê a nova irrupção do samba carioca nos anos '30 selecionou exatamente este padrão como seu ícone rítmico, como sua batida, enquanto que nas músicas folclóricas afro-brasileiras existe uma diversidade muito maior, inclusive com fórmulas rítmicas que até hoje não foram "aproveitadas", ou foram pouquíssimo "aproveitadas", pela música popular.

Quanto à primeira pergunta, nossa resposta é a seguinte: o padrão "novo" demorou muito mais a "pular a cerca" que separa a música folclórica da popular por ser muito mais contramétrico que o padrão "antigo". Para demonstrar cabalmente esta afirmação seria necessário entrar numa longa discussão sobre o que é contrametricidade e se se pode medi-la. Na impossibilidade de fazê-lo aqui, proponho aos leitores que constatem simplesmente que, quando escrito "à Ocidental", o padrão antigo apresenta uma "síncope", enquanto o "novo" apresenta, dependendo da maneira de sua realização, de duas a quatro "síncopes".

Esta alta contrametricidade do padrão "novo" submeteu-o a uma espécie de recalque que opera em vários níveis simultâneos: cognitivo, pois o ouvido tende a rejeitar ou reinterpretar a informação excessivamente diferente dos padrões habituais de uma dada cultura musical; social, pois sua "diferença" remete à diferença dos seus portadores, os negros, escravizados até 1888, marginalizados desde então; estético, pois mostrando de maneira demasiado gritante sua condição de "música de negros", o ritmo em questão se faz atribuir a mesma inferioridade que se enxerga em seus portadores - raça inferior, música inferior. De todas essas "atribuições" há inúmeros exemplos na literatura, desde o discurso de Rui Barbosa contra o Corta-Jaca tocado por Nair de Teffé até as seções policiais da imprensa reportadas por Flávio Silva (1983) ou Nina Rodrigues (1945:255-7). Estes exemplos são manifestações verbais do recalque da música afro-brasileira, do mesmo modo que a ausência de registro dos ritmos demasiado contramétricos antes de 1930 são uma manifestação musical do mesmo.

O dito recalque não é, evidentemente, absoluto: o lundu, como mostrou com a maestria de sempre Mário de Andrade (1944), já começara a abrir o caminho mais de cem anos antes. Mas o que ainda não foi dito é que o principal recurso musical pelo qual o lundu ostenta seu negrismo moderado é justamente o uso de fórmulas rítmicas cujo paradigma é o 332. Este é de aceitação muito mais fácil pela rítmica ocidental, principalmente quando transformado em "habanera" por uma semicolcheia providencial.

Quanto à segunda pergunta, ela nos parece mais complicada. Mas ao que tudo indica, por razões ainda a determinar, a batida "nova" foi a tradução mais conveniente da poliritmia das escolas de samba para a linguagem do rádio e do disco. Ela serviu ao mesmo tempo para que gente como Ismael Silva, Cartola e outros bambas exibisse sua diferença, mostrando que o que fazia era samba e não maxixe; e para que o Brasil repensasse sua identidade multi-racial, e chegasse, alguns anos após o período aqui discutido, a expressar essa identidade repensada por um emblema sonoro, que foi a introdução orquestral do célebre samba Aquarela do Brasil : a batida "nova", sem tirar nem por, tocada por uma orquestra "clássica" au grand complet... e sem hesitações rítmicas.


Referências bibliográficas

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