A configuração da prática musical da actualidade em Portugal, e o seu desenvolvimento nas décadas mais recentes, encontram-se relacionados com a operação de diversos factores de ordem ideológica cuja instrumentalidade importa esclarecer. Tais factores parecem ser determinantes na construção de uma linguagem musical, ser agentes de mudança musical, e resultar tanto da vontade de indivíduos e instâncias do poder centralizado, quanto de decisões pontuais dos diversos agentes de produção musical ao nível local.
Este tipo de factores de mudança distingue-se por operar ao nível das ideias, conscientes ou subconscientes, veiculadas de uma forma homogénea para um grupo relativamente grande, num espaço geográfico também amplo, e emanadas pelas instâncias sociais detentoras do poder.
O nacionalismo e a etnicidade são dois destes factores ideológicos. A sua importância torna-se imediatamente clara ao pensarmos que a nacionalidade - ao lado da humanidade, tem constituido um dos mais legítimos valores da vida política do nosso século ; as nações procuram a liberdade, traduzida em soberania nacional. E que a etnicidade tem vindo a ser operacionalizada em termos de justificação da construção de muitas nações . Nacionalismo e etnicidade relacionam-se na medida em que ambos pressupoem a determinação de limites entre grupos humanos, mas diferenciam-se pela pretensão à territorialidade. Eriksen (1993:6) sugere que a pretensão às fronteiras geográficas polìticamente determinadas constitui a principal marca diferenciadora entre o nacionalismo (associado ao estado) e a etnicidade.
No domínio do comportamento expressivo, e do caso particular da música, o nacionalismo tem-se relacionado com alguns fenómenos identificados como de etnicidade, e ao fenómeno da globalização de modos expressivos em espaços geográficos e linguísticos muito consideráveis: tanto dentro das fronteiras territoriais das nações, quanto fora delas através das consideráveis vagas migratórias de que muitas nações foram protagonistas. Torna-se evidente, assim, a necessidade de alguma reflexão sobre a operacionalização musical do conceito de nacionalismo, e a sua aplicação ao caso português durante o séc. XX, nomeadamente em questões tais como porquê, e como foi usada a música tradicional como símbolo do nacionalismo. O objectivo deste trabalho é oferecer algumas sugestões para a interpretação do nacionalismo como artefacto cultural e das suas relações com formas de comportamento expressivo tais como a música e a dança.
Apesar do seu grande poder político, o nacionalismo surge como construção ideológica de bases teóricas relativamente pobres, e capaz de apresentar materializações formalmente semelhantes mas de conteúdos muito diversificados em contextos políticos e ideológicos variados. Benedict Anderson, em 1983, refere que apesar da sua grande capacidade para a legitimação emocional, em vão se tem desenvolvido a busca da clareza teórica sobre as bases do nacionalismo. Nem a teoria Marxista, nem a teoria Liberal são capazes de explicar as bases do nacionalismo. Com efeito, a materialização nacionalista apresenta-se de formas muitos semelhantes onde quer que se encontre, contrariando a comodidade das dicotomias teóricas habitualmente estabelecidas entre estas duas teorias (Anderson 1983:7).
Como conceito, o nacionalismo manifesta uma grande universalidade formal. Todos os grupos que se pretendem afirmar como "nação" encontram manifestações concretas para a materialização do nacionalismo nas mais diversas formas de expressão, nomeadamente em formas concretas de comportamento expressivo tais como a música e a dança.
Utilizando a sugestão de Anderson (1983), o nacionalismo pode ser considerado como a criação de uma comunidade política imaginária. É resultante do desenvolvimento dos sistemas políticos ocidentais nos últimos cento e cinquenta anos. Anteriormente, o sistema monárquico tradicional, que dominava o espaço europeu, prestava por si só uma relativa coerência a uma população e a um espaço geográfico. As relações de lealdade e subserviência a uma mesma realeza, estabelecidas em sentido único e hieràrquicamente ascendente, constituiam uma característica comum a grupos de heterogeneidade social e cultural variável. A sua legitimidade resultava da origem sagrada do poder real, e não da emanação do poder a partir da população de um estado, tal como acontece nos chamados "estados eleitoralistas". Com as sucessivas passagens do poder dinástico para sistemas eleitorais, bem como com a secularização e o progressivo afastamento entre o poder dinástico e a autoridade espiritual que a igreja lhe conferia, muitos estados se viram obrigados a procurar novas formas de validação dos seus espaços de soberania, política e territorial. É então que surge a procura da validação nacional, e a criação dos chamados estados-nação europeus. As nações, como comunidades imaginadas, desenvolveram-se como substitutos dos reinados dinásticos, e das comunidades religiosas e linguísticas.
Um vasto número de razões contribuiu para esta substituição progressiva. No entanto, entre elas parece ser importante o conjunto de profundas mudanças que se verificaram ao nível dos modêlos de comunicação entre as pessoas que reconhecem uma soberania comum - rei ou estado. Este modêlo alterou-se em função do desenvolvimento dos meios de comunicação, trazendo aos grupos de pessoas a consciência da simultaneidade de existência com outros grupos de pessoas. Esta consciência despertou com as inovações tecnológicas que fizeram aumentar os níveis de comunicação hierárquicamente horizontais, em desproveito daqueles exclusivamente verticais.
Estado / Autoridade
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Estado / Nação
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Grupo Grupo
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Grupo Grupo
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(Modêlo vertical)
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(Modêlo transversal
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A materialização do nacionalismo, ou a figuração dessa realidade imaginária, teve que corresponder às capacidades funcionais de mediação dos diversos meios, ou media, de transmissão da construção nacional. Por um lado, o alvo desta construção nacional era uma grande massa populacional das pretendidas nações. Por outro lado, esta população era iletrada - ou analfabeta - na sua esmagadora maioria, pelo que se tornou vital a utilização de criações visuais e sónicas para a mediação do conceito de nação; partiu-se do princípio de que toda a gente, aínda qua analfabeta, tem acesso a um mundo puro de sinais sonoros e visuais. Aínda por outro lado, o performação simultânea de modos expressivos sónicos, motores e visuais é capaz de apelar e mobilizar um grande poder emocional, tão necessário para a criação de dinâmicas de entusiasmo popular e de mobilização nacional, das quais a guerra internacional é talvez o resultado mais evidente.
A sistemática instilação do nacionalismo foi realizada através dos aparelhos educativos, dos mass media, e das regras administrativas oficiais. Os sistemas educativos utilizaram a nação como tema para a alfabetização. Os limites fronteiriços, a divisão territorial, e a noção de comunidade linguística encontravam-se nos textos de aprendizagem das primeiras letras. O ensino da história, por seu lado, transmitia também uma perspectiva histórica intra-nacional, na qual as entidades exteriores desempenhavam habitualmente o papel de agressores e ameaçadores da integridade e da soberania nacionais. Em muitos casos, o ensino da música limitava-se mesmo à aprendizagem do hino nacional. Nos próprios espaços de aprendizagem , as salas de aula, os sinais da nacionalidade eram conspicuamente exibidos: encontravam-se nas paredes os retratos dos chefes da nação, e o mapa do território nacional completamente isolado dos seus vizinhos geográficos. Também a criação de organizações juvenis associadas ao sistema oficial de ensino contribuiram para a consolidação da consciência nacional.
A instilação do nacionalismo através dos mass media verificou-se sobretudo sob a forma do discurso e comentário político, quer através dos jornais quer através da rádio-difusão e da televisão. No entanto, a rádio como a televisão veicularam também diversos tipos de modos expressivos destinados a fomentar o sentimento nacional, incluindo sobretudo a música e a dança.
As regras administrativas oficiais agiram como factores de instilação do nacionalismo através da criação do conceito de "cidadão nacional", materializado em bilhetes de identidade, arquivos de identificação criminal, etc, bem como através da criação de instituições militares e para-militares de âmbito nacional.
No domínio dos produtos culturais, a criação do nacionalismo foi objecto de análises tão fecundas quanto a de Hobsbawm e Ranger em 1983, baseada no conceito de Invenção da Tradição. Segundo estes autores, em função das grandes transformações históricas do séc. XIX, os grupos, ambientes e contextos sociais exigiram novos processos para assegurar a coesão social e a identidade, e para estruturar as relações sociais.
Hobsbawm e Ranger basearam a sua análise na invenção de signos de nacionalidade, entendidos como tradicionais por pretensamente se reportarem ao passado. O passado, como história, foi utilizado como legitimação da nacionalidade, partindo do princípio assumido de que a nação, como organismo social, se move sólida e estavelmente num tempo homogéneo e vazio.
Documentar o passado nacional dos grupos foi a obra de inúmeros historiadores, que habitualmente produziram edições monumentais no domínio da história. Lexicógrafos, filólogos, gramatistas e folcloristas tiveram também uma importante participação nesta documentação; documentaram as formas que posteriormente possibilitaram a afirmação das bases culturais comuns às populações abrangidas pelo território de uma nação.
A invenção do conceito de Folklore coincide com o início das nacionalidades europeias. Não se trata de uma mera coincidência cronológica, mas sim de uma relação histórica de causa e consequência. De facto, o conceito transporta em si o mote do nacionalismo. O ingrediente da simultaneidade encontra-se patente no conceito de Folk: este conceito representa a conceptualização de um povo homogéneo e anónimo, pobre e contente, e de uma estrutura social horizontal. O conceito de Lore , por seu lado, refere-se às práticas culturais também homogéneas e anónimas desse povo, sublinhando a unicidade e originalidade dos traços entendidos como característicos de uma comunidade.
O folclore foi concebido, então, como a utilização do comportamento expressivo, sob os seus diversos modos, ao serviço da nacionalidade.
O folclore sobrevive de citações, sónicas e visuais, que consistem em traços, ou pseudo traços, de referentes, de elementos que transportam para o passado; mas estes traços encontram-se completamente descontextualizados, e abertos a qualquer contextualização. As citações folclóricas, assim, tornam-se por um lado em traços completamente esvaziados de história e, por outro lado, paradigmatizam a artificialidade de qualquer relato histórico, de qualquer história, ao proseguir um verdadeiro mimetismo e uma narrativa original impossíveis.
A performação folclórica consiste numa representação de um passado histórico. Tal representação apela à memória, identificada por designações tais como "memória colectiva" ou "memória de um povo". Enformada pelo envolvimento ideológico do nacionalismo, esta memória -como se de uma história analfabeta se tratasse- surge como uma espécie de precipitado estrutural cheio de arbitrariedade e convencionalidade no domínio das ligações espacio-temporais; obtem-se assim, com a memória, a ilusão da continuidade e da estabilidade territorial e histórica.
A memória -ou a história- desempenham aqui a função pragmática de investir de autoridade a objectivação folclórica que, como um monumento ou qualquer outro emblema, serve como ponto de referência autoritativo, cuja artificialidade -a qualquer nível- é liminarmente recusada. É assim criada a consciência histórica, legitimada pelas narrativas performadas durante a representação folclórica. Cria-se uma realidade ontológica, apreensível através de um único e privilegiado sistema de representação: o verdadeiro (a verdadeira música, o verdadeiro trajo, a verdadeira gastronomia, etc.).
Esta narrativa folclórica é uma sequência de elementos, com organização sintática. A sequência de símbolos consiste num denso reportório de citações auto-referenciais, não arbitrárias mas cuidadosamente escolhidas e condensadas de modo a significar não apenas uma instância, mas a generalidade dos seus traços referenciais. Esta acumulação e densificação de acontecimentos no espaço e no tempo, transforma a narrativa folclórica numa verdadeira meta-narrativa que justifica a verdade e exactidão dos traços nacionais representados durante a performação.
Os modos expressivos associados à música são frequentemente utilizados na concepção e performação da narrativa folclórica. A operacionalização da música na narrativa folclórica é um processo que envolve a utilização de expressões multisensoriais (multimedia), intensamente repetidas. A repetição, como modo de processamento do tempo, apela aos mecanismos da memória -colectiva ou individual-, através de associações simbólicas que tendem a identificar mutuamente fenómenos de diferentes ordens sensoriais. A imagem, o sabor, o olfacto, o tacto e o som são conjugados de forma a construir padrões que modelam o comportamento. Este comportamento, que dá origem às diversas conjugações multisensoriais - comportamento expressivo - passa a ser associado - por processos de memorização -, a interpretações individuais e colectivas da experiência humana: destas interpretações, a simultaneidade nacionalista surge como uma das mais importantes.
Os grupos e indivíduos procuram a reiteração destas experiências multisensoriais, com determinados fins a que funcionalistas como Alan Merriam (1964) e outros chamaram usos e funções: o gozo estético, o entretenimento, a comunicação, a representação simbólica, a resposta física, a contribuição para a integração da sociedade, etc. A reiteração destas experiências, pertencendo claramente ao domínio do ritual, é também utilizada com o intuito de efectuar algumas asserções, uma vez mais individuais e colectivas, de ordem política e social, precisamente no domínio daquela função a que Merriam chama "contribuição para a integração da sociedade" . No folclore, destacam-se asserções sobre a natureza dos grupos, em termos da sua origem, identificação, e coesão.
A utilização do comportamento expressivo como símbolo de nacionalidade em Portugal foi relativamente tardia, e revestiu-se de alguns aspectos particulares que decorreram de especificidades históricas que merecem uma breve referência.
Em primeiro lugar, Portugal foi um estado colonial e imperialista até muito tarde; as independências das colónias Africanas deram-se apenas a partir de 1974, após mais de uma década de guerra de resistência aos movimentos de libertação locais.
Em segundo lugar, a verdadeira expansão populacional a partir de Portugal deu-se já no séc. XX, em consequência da mobilização para a colonização de Africa, bem como de uma significativa vaga de migração para países em desenvolvimento económico. A colonização das possessões portuguesas em Africa surgiu como uma prioridade da política portuguesa ultramarina durante o período de vigência de um regime designado por "Estado Novo": foram criadas as condições para que um grande número de portugueses partisse para Africa, e aí se instalasse de um modo definitivo. A migração para países desenvolvidos deu-se em consequência das fracas condições sócio económicas que a população portuguesa enfrentava; só no período entre 1960 e 1972 cerca de um milhão e meio de pessoas migraram para países como a França, a Alemanha, a Suiça, a República da África do Sul, a Venezuela, o Canadá e os Estados Unidos da América. O alargamento abrupto do horizonte geográfico e cultural da população portuguêsa nos princípios do séc. XX, através de grupos migrantes conhecidos hoje por "comunidades portuguêsas" e calculados em mais de quatro milhões de pessoas, motivou a necessidade da construção da imagem nacional .
Em terceiro lugar, o Romantismo literário atingiu o seu auge em Portugal apenas em meados do século XIX, quando dois autores de vulto, Almeida Garrett e Alexandre Herculano, procuram encher de matéria portuguêsa os moldes que traziam da Europa. O espírito nacional, a alma do povo e a reinvenção da história eram alguns destes moldes. Em 1843 Garrett publica o seu "Cancioneiro Geral", a primeira obra de compilação de literatura oral tradicional. Posteriormente, as novelas de autores como Júlio Dinis floresceram como forma de imaginar a comunidade nacional, como meio prático de a representar: "As Pupilas do Sr. Reitor", "Serões da Província", etc. A progressão casual do tempo interior da novela para o dia-a-dia dos leitores portugueses proporciona uma confirmação hipnótica da solidez da comunidade única, que inclui personagens, autor e leitores.
A edição, por Neves e Melo em 1872, dos primeiros documentos sobre a prática musical tradicional em Portugal tornou possível a consciência da simultaneidade, de que muitas outras pessoas pertencem à mesma cultura musical. Estas pessoas, consumidoras de música, interligadas pela publicação destes e posteriores documentos (iconografia, fonogramas, transcrições de texto e de música que foram publicados sobretudo a partir da década de 1920), formaram o embrião da comunidade musical nacional imaginada. Os documentos publicados deram uma nova fixidez à linguagem musical, qua a longo prazo ajudou a criar as imagens de antiguidade e autenticidade, tão centrais à ideia de nação. O objecto publicado tornou-se fixo, de forma permanente, capaz de reprodução e leitura virtualmente infinitas (temporal e espacialmente). Deixou de estar sujeito à individualização e à modernização. A música tradicional publicada transforma-se em autoridade, em modêlo a seguir.
Significativamente, a comunidade única da novela, feita de personagens, autores e leitores, estabelece-se posteriormente na música: as personagens são o povo anónimo, feito de figurantes, cantores, instrumentistas e dançarinos cujos nomes são sempre desconhecidos; o autor é o povo anónimo, porque a autoria do reportório nunca é identificada; e o leitor, a audiência, é a nação, o povo anónimo, pois a frequência do espectáculo de música tradicional é livre, gratuita, aberta a todas as classes sociais, e portanto homogeneizante.
Em quarto lugar, a decadência da música dramática italiana no teatro de S. Carlos - o verdadeiro teatro nacional de ópera - , e a sua queda como linguagem internacional nos finais do séc. XIX, contribuiram significativamente para a busca e promoção de uma linguagem musical própria - nacional - em Portugal. O idioma musical popular foi incluído em obras de compositores tais como José Viana da Mota (1868-1948), aluno de Franz Liszt e seu seguidor na utilização deste processo de citação musical .
A utilização da música como símbolo do nacionalismo em Portugal atingiu o seu auge durante o período de vigência do já referido Estado Novo, idealizado e concretizado por António de Oliveira Salazar entre os anos de 1926 e 1959. Salazar guiar-se-ía pelo princípio do "sentimento profundo da realidade objectiva da Nação portuguêsa", confirmado no famoso slogan de 1929 em que afirmava "Nada contra a nação, tudo pela nação". Bem enraizado no ideário nacionalista de cariz europeu, Salazar afirmava em 1943 que a nação "é para nós sobretudo uma entidade moral, que se formou através de séculos pelo trabalho e solidariedade de sucessivas gerações, ligadas por afinidades de sangue e de espírito, e a que nada repugna crer (que) esteja atribuída no plano providencial uma missão específica no conjunto humano" (citado em Ramos do Ó 1993:246).
A consolidação da ideia de nação em Portugal, o centro da política cultural do Estado Novo, ficaria a cargo de uma instituição governamental, o SPN, Secretariado de Propaganda Nacional, criado em 1933 e dirigido pelo então jornalista António Ferro. A cargo deste secretariado ficava a árdua tarefa de, nas palavras de Salazar, "elevar o espírito da gente portuguêsa no conhecimento do que é e realmente vale, como grupo étnico, como meio cultural, como força de produção, como capacidade civilizadora, como unidade independente no concerto das nações; clamar, gritar incessantemente o que é contra o que se diz ser; repôr constantemente as coisas no terreno nacional, referi-las sempre à nação..." (ib.: 235).
No SPN ficariam depositados os recursos para o desenvolvimento da política cultural do Estado Novo. A primeira grande intervenção do SPN na criação de uma linguagem folclórica nacional parece ter-se verificado nos finais da década de 1930, com uma iniciativa que foi denominada como "O Galo de Prata", ou o concurso da "Aldeia mais Portuguêsa". Tratava-se, de facto, de um concurso que pretendia apurar a pequena localidade do território metropolitano que reunia o maior número de características da "Portugalidade", definidas alías em regulamento publicado em 1938 (SPN 1938). Deste regulamento constam várias condições, que deviam ser reunidas pelas aldeias que pretenderam candidatar-se ao prémio, destacando-se entre elas a obrigatoriedade de possuir um grupo musical, e de não exibir evidentes sinais materiais de modernidade tais como indústrias ou edificações.
Estas condições indicam claramente o tipo de meta-narrativa pretendida pelas instâncias do poder, bem como o modêlo de equidistância encontrado para a nação, pelo menos para a imagem do Portugal rural de então.
A aldeia vencedora deste concurso foi a aldeia de Monsanto, uma pequena localidade da então província da Beira Baixa, situada bem no interior do centro de Portugal e - irònicamente - bem próxima da fronteira com Espanha. Esta aldeia viu-se, de repente, congelada no tempo, e transformada em modêlo oficial da Portugalidade, a imitar por outras localidades. Foi objecto de uma grande mediatização, através da rádio, do cinema, de quase todos os jornais e revistas, de livros e colecções de postais, panfletos turísticos e discos. O seu Rancho Folclórico, criado propositadamente para o Concurso, ganhou uma mobilidade que o levou a diversas localidades do país .
O conjunto de grupos semelhantes ao Rancho Folclórico de Monsanto, entretanto institucionalizados por todo o país, constituiu o mais importante domínio de intervenção do estado junto das práticas musicais tradicionais.
Muita pesquisa se encontra por fazer no domínio da criação e desenvolvimento do fenómeno "Rancho Folclórico" em Portugal. É evidente, no entanto, que o formato de performação chamado "Rancho" teve uma importância decisiva para a configuração da música tradicional portuguêsa a partir, pelo menos, dos anos trinta e até aos nossos dias. Interessa averiguar, entre outras questões, os motivos que levaram a que tal formato se transformasse na linguagem oficial do folclore em Portugal. Por que razão foi adoptado para representar a referida linguagem equidistante?
Se aceitarmos que a origem dos ranchos folclóricos se encontra nos grupos de trabalhadores sazonais que se deslocavam de terra em terra para trabalhar, e nos grupos de romeiros que se dirigiam às romarias, então encontramos um padrão comum às várias regiões do país. Outra hipótese poderá ser a da importação do modêlo de um outro país europeu, porquanto sabemos que formatos idênticos aos do "rancho" existiam já anteriormente noutros países. De qualquer modo, o formato corresponde às características gerais da narrativa nacionalista, uma vez que:
A promoção dos ranchos folclóricos pelo poder parece ter-se verificado especialmente através de instituições nacionais tais como a Junta Central das Casas do Povo, que dispunha localmente de todas as condições -financeiras e logísticas- para promover a formação e intitucionalização dos ranchos, a Fundação Nacional Para a Alegria no Trabalho, FNAT, que dispunha de uma rede nacional capaz de promover a apresentação e mobilidade dos ranchos folclóricos já instituidos, e a Junta Nacional de Educação que, entre outros, possuía o objectivo de "fazer restaurar as tradições portuguêsas da música, da arte cénica e do canto coral como elementos de espiritualização da vida, de educação colectiva e de coesão nacional" (Ramos do Ó 1993:217).
Outro processo que serviu para o apoio e promoção dos ranchos folclóricos pelo poder central, foi a realização de inúmeros festivais de folclore ao nível provincial, organizados ou fortemente apoiados pelas Juntas de Turismo. Tais festivais consistiam em sequências diárias de apresentações de diversos ranchos; a cada rancho era atribuido um bloco de cerca de 20 minutos em palco. Do festival fazia também parte a atribuição de prémios aos melhores participantes. Muitos destes festivais foram difundidos, quer através da rádio quer, mais modernamente, através da televisão. Realizados em contextos urbanos, os festivais acentuavam o carácter rural da música popular em Portugal. No documento de apresentação do Festival de Folclore do Estoril, em 1962, lê-se o seguinte: "Em pleno Estoril Fidalgo, surge a gente humilde das aldeias a mostrar que na sua alma vibra intensamente o orgulho legítimo do amor à terra onde nasceu, paixão intensa pelas coisas tradicionais, que são apanágio do seu coração generoso e bom" (Festival 1962: s/ nº pag.).
A equidistância do formato do Rancho Folclórico em Portugal, que permitiu a enfatização das semlhanças e a sua instituição como linguagem oficial, ficou a dever-se a vários factores, de entre os quais saliento:
A operacionalização da música como símbolo de nacionalismo processa-se pela construção de criações visuais e sónicas para a mediação do conceito de nação.
A música, como forma de comportamento expressivo, permite a invenção de uma narrativa histórica nacional cuja autoridade compreensiva é afirmada através de ritual, e através da sacralização de acontecimentos icónicos escolhidos, e repetidos - bem como da sua nostalgia, e saudade da repetição.
Neste contexto, o Folclore é um conjunto de referências que operacionalizam a comunidade imaginada, imaginária; e que permite negociar, minimizando-as, diferenças culturais através da manipulação musical de associações simbólicas. Foi utilizado como um instrumento de consolidação cultural, supostamente conduzindo à consolidação social.
A partir da arbitrariedade e convencionalidade no domínio das ligações espacio-temporais desta narrativa foi criada uma linguagem equidistante em relação aos diversos clusters culturais dos territórios nacionais. Esta linguagem, entendida como uma realidade ontológica, foi eficazmente apreensível através de comportamentos expressivos multisensoriais, tais como a música e a dança.
A folclorização das linguagens musicais em Portugal deu origem ao estabelecimento de hierarquias de poder. Certas linguagens encontravam-se inevitavelmente mais próximas da "linguagem oficial", e dominaram a sua forma final - os Ranchos Folclóricos. Esta "imaginação" nacional moveu-se num contexto sociológico estático, que pretendeu identificar-se com a realidade. Trata-se de um contexto claramente definido em termos de sucessivos plurais - actores plurais e fenómenos e associações plurais -, que no seu conjunto adquirem um significado social estruturante. A"nação" assim criada age como uma estrutura simbólica viva capaz de conduzir a acção social e de regulamentar a acção individual.
Na sua origem, a fixação da linguagem oficial em Portugal - e a criação de uma hierarquia de linguagens - parece ter sido um processo largamente inconsciente, resultante do contacto estabelecido entre as tecnologias da comunicação e a diversidade cultural. Posteriormente, esta hierarquia foi propagada através dos canais do poder administrativo do estado.
Uma vez adquirido o estatuto de linguagem oficial, os Ranchos Folclóricos transformaram-se em modêlos a imitar, criando uma homogeneização das linguagens musicais que dura até ao presente, e se globalizou no território nacional bem como na Europa, América do Sul e do Norte, e África Austral através de grupos migrantes oriundos de Portugal, totalizando quase quinze milhões de indivíduos.
No contexto da política cultural do Estado Novo, e de alguns aspectos da sua sobrevivência até aos nossos dias, as categorias de desempenho musical designadas por Folclore contribuiram para a criação da consciência histórica da nação. Com uma clara estratégia de horizontalização de relações sociais, a verdadeira meta-narrativa folclórica contribuiu também para iludir o real locus do poder de um estado que cedo revelou o seu carácter repressivo.
O Folclore, nos termos práticos da sua execução musical e nas suas associações simbólicas, recorre ao processamento do tempo envolvendo mecanismos de memória selectiva, e colectiva. A operacionalização desta memória é instrumental para a asserção de princípios ideológicos de tipos diversos, que têm vindo a ser incluídos em duas categorias analíticas diferentes relativas a fenómenos estruturalmente semelhantes: nacionalismo, e identificação étnica ou etnicidade. O primeiro como narrativa centralista, e a segunda como narrativa de projecção universalista.
Gostaria que estas sugestões para a interpretação do nacionalismo como artefacto cultural, e das suas relações com o comportamento expressivo e a música em particular, pudessem sugerir alguma reflexão sobre processos de consolidação cultural através da música, tais como a etnicidade e a sua relação com o nacionalismo, e ajudar a localizá-los como estratégias sociais e ideológicas nos seus respectivos contextos históricos.